No dia 11 de fevereiro tivemos a oficina "Fragmentação corporal na Dança: Possibilidades motoras criativas a partir da dissociação das partes do corpo", como contrapartida da residência do Grupo Corpo Estranho no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Experiência rica e renovadora, compartilhar com pessoas diferentes, que trazem um novo olhar, um frescor para uma pesquisa já em andamento. Por conta disso, posto aqui um artigo que traz um pouco de como são tratadas algumas questões sobre a fragmentação corporal e o corpo que dança na presente pesquisa.
Dança e fragmentação corporal – a
experiência da dissociação das partes a partir do movimento sucessivo
O que se entende por
fragmentação? Como trabalhar o conceito de fragmentação em um corpo íntegro?
Como abordar esse tema a partir do corpo que dança?
Esse artigo faz um recorte
de uma pesquisa sobre a fragmentação corporal na dança e sua relação com as
Artes Visuais a partir de um diálogo entre corpo e imagem. Ao longo dessa
pesquisa, observamos dois diferentes modos de compreender a fragmentação. No
primeiro modo, a partir da ideia de autonomia, as partes do corpo são tratadas
como estruturas íntegras, independentes de um todo. No segundo modo, com a ideia
de dissociação, o corpo é reorganizado em sua estrutura, e suas partes podem
ser suprimidas, multiplicadas e deslocadas, afastando-o da imagem do corpo
humano como normalmente o conhecemos.
Neste recorte, é proposta uma
reflexão sobre as possibilidades de construção gestual na dança a partir da
ideia de autonomia, tendo como principal fonte de investigação a análise e a conscientização
das partes do corpo e suas potencialidades expressivas pelo viés dos Fundamentos
da Dança de Helenita Sá Earp.
Ao longo
da história da dança, percebe-se uma grande recorrência de padrões estéticos
que valorizam, principalmente, o belo e as formas proporcionais. Por isso,
quando se pensa no corpo que dança é ‘quase’ sempre natural imaginar um corpo
íntegro movendo-se de maneira leve e harmoniosa. Quando se parte, porém, do
pressuposto de uma dança ‘dita’ contemporânea, marcada desde a sua origem pela
valorização da singularidade dos corpos, pelo compromisso com a pesquisa e a
experimentação e pela diversidade das práticas envolvidas, entre outros
fatores, a potencialidade imaginativa acerca das possibilidades estéticas
aumenta consideravelmente. Pensar na fragmentação do corpo que dança, após um estranhamento inicial
que talvez suscite em imagens de um corpo desmembrado ou deformado, pode se
desdobrar em experiências distintas que vão desde o convívio ‘artístico’ entre
dançarinos deficientes físicos e não deficientes, até artifícios tecnológicos
que criam a ilusão da fragmentação do corpo. Dessa maneira, percebe-se que a
fragmentação corporal na dança não se trata de um tema inédito, embora pouco
recorrente. Atualmente, temos na dança contemporânea, práticas que permitem
diálogos com as mais distintas áreas do conhecimento, artísticas ou não,
ampliando assim, seu campo de atuação.
Os ‘Fundamentos da Dança’,
concebidos pela Professora Helenita Sá Earp e estudados nos Cursos de Graduação
em Dança da UFRJ, visam à construção de um corpo consciente apoiado em
princípios que desvelam diferentes técnicas pautado nos processos de
investigação criativa do corpo. Não se atendo, portanto, a modelos
pré-estabelecidos que enfatizam a reprodução do movimento através de uma lógica
do ‘passo de dança’ mas do conhecimento do corpo. Com intenções
artístico-pedagógicas, esses fundamentos são organizados em Parâmetros
Diversificadores da Ação Corporal: Movimento, Espaço, Forma, Dinâmica e Tempo
e, dessa maneira, através de um enfoque seletivo, auxiliam no entendimento dos
fatores que envolvem o movimento dançado. Tendo o corpo como referencial,
propõe um entrosamento entre esses parâmetros que auxiliam na estruturação de
um vocabulário corporal consistente e calcado na investigação criativa de seus
movimentos. A separação do estudo em parâmetros distintos visa sublinhar
especificidades contidas em cada um deles, mas compreende-se que eles estão em
constante relação, por exemplo: um movimento possui uma forma, está em relação
com o seu espaço de atuação e é realizado com a aplicação de determinada
intensidade da força em um intervalo de tempo, ou seja, cada movimento do nosso
corpo perpassa todos os parâmetros.
Não pretendemos, entretanto, aprofundar
cada um dos parâmetros mencionados. Aqui, daremos atenção principalmente ao
Parâmetro Movimento, por acreditar que este aproxima a fragmentação por
dissociação através do movimento sucessivo.
O Parâmetro Movimento
responsabiliza-se pelo estudo estrutural do corpo, compreendendo partes e todo,
apoiado nos estudos anatômicos que determinam os movimentos de cada
parte/segmento do corpo humano e deste como um todo. Faz analogia aos
movimentos do universo, translação e rotação, definindo os movimentos básicos
do corpo por translações (deslocamentos) e rotações (giros em torno de um eixo
fixo). Focaliza cada parte do corpo a fim de entender melhor seu funcionamento
e explora as possibilidades dos movimentos serem executados de maneira isolada
(um movimento e/ou uma parte) e combinada (mais de um movimento e/ou parte).
Determina duas maneiras de combinar os movimentos: sucessivamente, quando um
movimento é executado por vez em uma série encadeada e simultaneamente, quando
mais de um movimento é executado por vez. Estabelece ainda dois estados
corpóreos: o primeiro, denominado Liberado, caracteriza-se pelo deslocamento
das partes e/ou do corpo como um todo no espaço, onde o fluxo de movimentos é
perfeitamente visível; o segundo, denominado Potencial, caracteriza-se pela
pausa, pela imobilidade, mas, no corpo, existe um movimento latente, pulsante,
imperceptível a olho nu, mas a espreita de um devir. Dessa maneira, a pausa é
percebida pela não visualização de movimentos liberados.
O Parâmetro Movimento fornece
assim, ferramentas para investigar as possibilidades do corpo a partir dos
movimentos das partes, mas também do corpo como um todo. Helenita denominou
‘Famílias da Dança’ os movimentos de translação e rotação do corpo como um todo
e agrupados de acordo com aspectos específicos. Transferência, Locomoção,
Voltas, Saltos, Quedas, Elevações, caracterizam ações, determinadas por sua
própria nomeação, onde o corpo atua de forma global.
Percebe-se, assim a importância
deste Parâmetro na presente pesquisa, visto a sua proposição de uma
investigação detalhada que abarca tanto os pedaços como o corpo em sua
inteireza.
Pensando no conceito de fragmentação por dissociação das partes do corpo
(dissociar como separar), na dança podemos utilizar o termo dissociação para os
movimentos das partes do corpo que acontecem de maneira sucessiva. Isolando
cada parte do corpo nos movimentos articulares que cada uma pode executar, a
dissociação acontece com a “separação” na execução dos movimentos. Pode-se
assim denominar movimentação fragmentada aquela que se dá pelo movimento
sucessivo das/entre partes do corpo.
Visualmente, essa movimentação fragmentada aparece como se entre cada
movimento sucessivo existisse uma pausa no tempo, uma micro-parada na
trajetória do movimento executado. Essa pausa, porém, não necessariamente
interrompe o fluxo do movimento, que pode ser mantido, não só se a pausa for a
um tempo curto, mas se o corpo todo estiver integrado na execução do movimento,
trazendo uma ligação da energia aplicada ao mesmo. Sendo assim, o movimento
fragmentado pode ter interrupção em nível da sua trajetória visual, mantendo a
continuidade na aplicação da energia.
Nesse contexto, compreende-se que
fragmentação por dissociação acontece com a execução sucessiva das/entre partes
do corpo, exigindo uma grande consciência de seus movimentos e estimulando suas
possibilidades motoras criativas, sendo explorada como possibilidade estética e
pedagógica.
São muitas as maneiras de se pensar e explorar a fragmentação corporal na dança a partir da sucessividade na execução dos movimentos, partindo de combinações simples e chegando às mais complexas como no exemplo abaixo proposto na oficina:
1. Fazer uma sequencia de movimentos com os membros inferiores, de forma simétrica e ao mesmo tempo;
2. Repetir a sequencia de movimentos, de maneira sucessiva, alternando os membros inferiores, em tempos seguidos;
3. Repetir a sequencia de movimentos com tempos distintos (uma perna começa antes da outra) mas a execução das duas é simultânea, trazendo formas assimétricas e aumentando o trabalho de coordenação motora.
Essa movimentação dita fragmentada pode ser explorada de diversas maneiras a partir de estratégias de improvisação/criação. Por exemplo quando trabalha-se a partir de diferentes apoios de partes do corpo com o chão, leva-se em conta por um lado uma certa limitação da parte que está apoiada e detém peso, sendo mais difícil de deslocá-la, em contrapartida, pode-se criar uma espécie de força de resistência do corpo com o chão que fixa a parte apoiada, e possibilita uma maior liberdade das partes com menos peso ou afastadas do chão.
Fragmentar, decompor, separar, dissociar, ir por partes, decompor o caminho, segmentar o espaço, desenhar linhas, etc.... As possibilidades são infindas, mesmo que algumas posições do corpo no chão possam parecer limitadas. O trabalho de apoio do corpo no chão pode aos poucos trazer uma intimidade que transforme essa superfície rígida e imóvel em parceira de trabalho, em extensão do meu próprio corpo, me auxiliando a fazer de um espaço recortado e limitado, sem limites!
Referências Bibliográficas
EARP, Ana
Célia de Sá. Princípios de conexões dos movimentos básicos em suas relações
anátomo cinesiológicas na dança segundo Helenita Sá Earp. In: VI Congresso de pesquisa e
pós-graduação em artes cênicas 2010 (ABRACE).
JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São
Paulo: Estação Liberdade, 2002.
Créditos das fotos
Coreografia: O avesso da pele
Intérprete-criadora: Taísa Magno
Fotografia: Aline Teixeira