sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Dança e Fragmentação Corporal

No dia 11 de fevereiro tivemos a oficina "Fragmentação corporal na Dança: Possibilidades motoras criativas a partir da dissociação das partes do corpo", como contrapartida da residência do Grupo Corpo Estranho no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Experiência rica e renovadora, compartilhar com pessoas diferentes, que trazem um novo olhar, um frescor para uma pesquisa já em andamento. Por conta disso, posto aqui um artigo que traz um pouco de como são tratadas algumas questões sobre a fragmentação corporal e o corpo que dança na presente pesquisa.














Dança e fragmentação corporal – a experiência da dissociação das partes a partir do movimento sucessivo

O que se entende por fragmentação? Como trabalhar o conceito de fragmentação em um corpo íntegro? Como abordar esse tema a partir do corpo que dança?
Esse artigo faz um recorte de uma pesquisa sobre a fragmentação corporal na dança e sua relação com as Artes Visuais a partir de um diálogo entre corpo e imagem. Ao longo dessa pesquisa, observamos dois diferentes modos de compreender a fragmentação. No primeiro modo, a partir da ideia de autonomia, as partes do corpo são tratadas como estruturas íntegras, independentes de um todo. No segundo modo, com a ideia de dissociação, o corpo é reorganizado em sua estrutura, e suas partes podem ser suprimidas, multiplicadas e deslocadas, afastando-o da imagem do corpo humano como normalmente o conhecemos.
Neste recorte, é proposta uma reflexão sobre as possibilidades de construção gestual na dança a partir da ideia de autonomia, tendo como principal fonte de investigação a análise e a conscientização das partes do corpo e suas potencialidades expressivas pelo viés dos Fundamentos da Dança de Helenita Sá Earp.







Ao longo da história da dança, percebe-se uma grande recorrência de padrões estéticos que valorizam, principalmente, o belo e as formas proporcionais. Por isso, quando se pensa no corpo que dança é ‘quase’ sempre natural imaginar um corpo íntegro movendo-se de maneira leve e harmoniosa. Quando se parte, porém, do pressuposto de uma dança ‘dita’ contemporânea, marcada desde a sua origem pela valorização da singularidade dos corpos, pelo compromisso com a pesquisa e a experimentação e pela diversidade das práticas envolvidas, entre outros fatores, a potencialidade imaginativa acerca das possibilidades estéticas aumenta consideravelmente. Pensar na fragmentação do corpo que dança, após um estranhamento inicial que talvez suscite em imagens de um corpo desmembrado ou deformado, pode se desdobrar em experiências distintas que vão desde o convívio ‘artístico’ entre dançarinos deficientes físicos e não deficientes, até artifícios tecnológicos que criam a ilusão da fragmentação do corpo. Dessa maneira, percebe-se que a fragmentação corporal na dança não se trata de um tema inédito, embora pouco recorrente. Atualmente, temos na dança contemporânea, práticas que permitem diálogos com as mais distintas áreas do conhecimento, artísticas ou não, ampliando assim, seu campo de atuação.

Os ‘Fundamentos da Dança’, concebidos pela Professora Helenita Sá Earp e estudados nos Cursos de Graduação em Dança da UFRJ, visam à construção de um corpo consciente apoiado em princípios que desvelam diferentes técnicas pautado nos processos de investigação criativa do corpo. Não se atendo, portanto, a modelos pré-estabelecidos que enfatizam a reprodução do movimento através de uma lógica do ‘passo de dança’ mas do conhecimento do corpo. Com intenções artístico-pedagógicas, esses fundamentos são organizados em Parâmetros Diversificadores da Ação Corporal: Movimento, Espaço, Forma, Dinâmica e Tempo e, dessa maneira, através de um enfoque seletivo, auxiliam no entendimento dos fatores que envolvem o movimento dançado. Tendo o corpo como referencial, propõe um entrosamento entre esses parâmetros que auxiliam na estruturação de um vocabulário corporal consistente e calcado na investigação criativa de seus movimentos. A separação do estudo em parâmetros distintos visa sublinhar especificidades contidas em cada um deles, mas compreende-se que eles estão em constante relação, por exemplo: um movimento possui uma forma, está em relação com o seu espaço de atuação e é realizado com a aplicação de determinada intensidade da força em um intervalo de tempo, ou seja, cada movimento do nosso corpo perpassa todos os parâmetros.
Não pretendemos, entretanto, aprofundar cada um dos parâmetros mencionados. Aqui, daremos atenção principalmente ao Parâmetro Movimento, por acreditar que este aproxima a fragmentação por dissociação através do movimento sucessivo.

O Parâmetro Movimento responsabiliza-se pelo estudo estrutural do corpo, compreendendo partes e todo, apoiado nos estudos anatômicos que determinam os movimentos de cada parte/segmento do corpo humano e deste como um todo. Faz analogia aos movimentos do universo, translação e rotação, definindo os movimentos básicos do corpo por translações (deslocamentos) e rotações (giros em torno de um eixo fixo). Focaliza cada parte do corpo a fim de entender melhor seu funcionamento e explora as possibilidades dos movimentos serem executados de maneira isolada (um movimento e/ou uma parte) e combinada (mais de um movimento e/ou parte). Determina duas maneiras de combinar os movimentos: sucessivamente, quando um movimento é executado por vez em uma série encadeada e simultaneamente, quando mais de um movimento é executado por vez. Estabelece ainda dois estados corpóreos: o primeiro, denominado Liberado, caracteriza-se pelo deslocamento das partes e/ou do corpo como um todo no espaço, onde o fluxo de movimentos é perfeitamente visível; o segundo, denominado Potencial, caracteriza-se pela pausa, pela imobilidade, mas, no corpo, existe um movimento latente, pulsante, imperceptível a olho nu, mas a espreita de um devir. Dessa maneira, a pausa é percebida pela não visualização de movimentos liberados.
O Parâmetro Movimento fornece assim, ferramentas para investigar as possibilidades do corpo a partir dos movimentos das partes, mas também do corpo como um todo. Helenita denominou ‘Famílias da Dança’ os movimentos de translação e rotação do corpo como um todo e agrupados de acordo com aspectos específicos. Transferência, Locomoção, Voltas, Saltos, Quedas, Elevações, caracterizam ações, determinadas por sua própria nomeação, onde o corpo atua de forma global.
Percebe-se, assim a importância deste Parâmetro na presente pesquisa, visto a sua proposição de uma investigação detalhada que abarca tanto os pedaços como o corpo em sua inteireza.

Pensando no conceito de fragmentação por dissociação das partes do corpo (dissociar como separar), na dança podemos utilizar o termo dissociação para os movimentos das partes do corpo que acontecem de maneira sucessiva. Isolando cada parte do corpo nos movimentos articulares que cada uma pode executar, a dissociação acontece com a “separação” na execução dos movimentos. Pode-se assim denominar movimentação fragmentada aquela que se dá pelo movimento sucessivo das/entre partes do corpo.
Visualmente, essa movimentação fragmentada aparece como se entre cada movimento sucessivo existisse uma pausa no tempo, uma micro-parada na trajetória do movimento executado. Essa pausa, porém, não necessariamente interrompe o fluxo do movimento, que pode ser mantido, não só se a pausa for a um tempo curto, mas se o corpo todo estiver integrado na execução do movimento, trazendo uma ligação da energia aplicada ao mesmo. Sendo assim, o movimento fragmentado pode ter interrupção em nível da sua trajetória visual, mantendo a continuidade na aplicação da energia.
Nesse contexto, compreende-se que fragmentação por dissociação acontece com a execução sucessiva das/entre partes do corpo, exigindo uma grande consciência de seus movimentos e estimulando suas possibilidades motoras criativas, sendo explorada como possibilidade estética e pedagógica.








São muitas as maneiras de se pensar e explorar a fragmentação corporal na dança a partir da sucessividade na execução dos movimentos, partindo de combinações simples e chegando às mais complexas como no exemplo abaixo proposto na oficina: 
1. Fazer uma sequencia de movimentos com os membros inferiores, de forma simétrica e ao mesmo tempo;
2. Repetir a sequencia de movimentos, de maneira sucessiva, alternando os membros inferiores, em tempos seguidos;
3. Repetir a sequencia de movimentos com tempos distintos (uma perna começa antes da outra) mas a execução das duas é simultânea, trazendo formas assimétricas e aumentando o trabalho de coordenação motora.

Essa movimentação dita fragmentada pode ser explorada de diversas maneiras a partir de estratégias de improvisação/criação. Por exemplo quando trabalha-se a partir de diferentes apoios de partes do corpo com o chão, leva-se em conta por um lado uma certa limitação da parte que está apoiada e detém peso, sendo mais difícil de deslocá-la, em contrapartida, pode-se criar uma espécie de força de resistência do corpo com o chão que fixa a parte apoiada, e possibilita uma maior liberdade das partes com menos peso ou afastadas do chão.
Fragmentar, decompor, separar, dissociar, ir por partes, decompor o caminho, segmentar o espaço, desenhar linhas, etc.... As possibilidades são infindas, mesmo que algumas posições do corpo no chão possam parecer limitadas. O trabalho de apoio do corpo no chão pode aos poucos trazer uma intimidade que transforme essa superfície rígida e imóvel em parceira de trabalho, em extensão do meu próprio corpo, me auxiliando a fazer de um espaço recortado e limitado, sem limites!


Referências Bibliográficas

EARP, Ana Célia de Sá. Princípios de conexões dos movimentos básicos em suas relações anátomo cinesiológicas na dança segundo Helenita Sá Earp. In: VI Congresso de pesquisa e pós-graduação em artes cênicas 2010 (ABRACE).

JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.


Créditos das fotos

Coreografia: O avesso da pele
Intérprete-criadora: Taísa Magno
Fotografia: Aline Teixeira