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Hans Bellmer. La Poupée, 1936 |
O artista vive de olhos, ouvidos e poros abertos ao mundo, selecionando
e reelaborando informações apreendidas e que, possam de alguma forma, estar
presentes não só em uma obra, mas em seu percurso como criador. Sendo assim, “o
artista recolhe e acolhe tudo o que, de algum modo, lhe atrai” (Salles, 2004),
mesmo que momentaneamente não saiba o porquê. Sendo a percepção o elemento
primeiro na obtenção de informações e futuramente na produção de conhecimento,
o modo pelo qual o artista compreende e apreende o mundo à sua volta passa por
um filtro perceptivo, único e pessoal.
O meu filtro perceptivo para o considerado estranho, incomum, temporariamente adormecido após a aventura de uma defesa de mestrado, abriu os
olhos renovado e descansado para espreguiçar e voltar à ativa, ao trabalho.
Me deparo com leituras sobre processos de criação que se confundem com
meus fazeres diários, meus processos de/em construção. Volto ao artista que acompanhou
nos últimos anos meus fazeres criativos, pressionando meus pensamentos, transformando
meu olhar sobre o corpo, o gesto, a imagem, a dança... a vida.
Pesquisar a obra de um artista é praticamente um mergulho na superfície.
Ficamos à margem, recolhendo indícios, pistas de seu percurso criativo, com o
intuito de aproximar-nos da realidade própria do seu trabalho. Hans Bellmer me
fez conhecer um universo singular, regido por leis próprias, criadas em um
processo minucioso e íntimo entre o artista e sua obra no percurso de seu projeto
poético. Sugeriu-me outras maneiras de perceber o mundo através de um filtro que
passa pela imaginação, afastando-se das representações fixas que reduzem o
olhar a limites e medidas. Por fim, desnudou-me de conceitos pré-concebidos,
revelando meus desejos mais íntimos, aqueles que escondemos, mesmo nos sonhos.
Retomar um processo inacabado é transitar por tendências e acasos,
investir na potência de sua continuidade...
"No romance ‘Frankenstein’ de Mary Shelley, a
criatura, na sua condição primeva, era puro monstro e, a partir da interação
com o mundo dos homens, teve a chance de se humanizar. Por meio do letramento,
sua bestialidade foi suplantada, permitindo alcançar o senso de si e vislumbrar
que havia um lugar para seu ser (humano). Frankenstein é o símbolo de uma
sociedade diversa, cujos membros disputavam lugares sem, contudo, ter a certeza
do lugar a que pertenciam. As incertezas e inseguranças se estabeleciam por não
haver mais um lugar existente, pronto, à espera de cada um, por mais que alguns
ainda acreditassem na presença dele. Cada indivíduo enfrentava o desafio de
construir seu próprio lugar no mundo e os próprios valores." (MALTA, 2009).
Referências Bibliográficas
SALLES, Cecília Almeida. Gesto
Inacabado – Processo de criação artística. Segunda edição. São Paulo:
Annablumme/FAPESP: 2004.
MALTA, Marize. Corpos Estranhos:
Frankenstein e o objeto eclético. In: Corpo: identidades, memórias,
subjetividades. Org. Monica Pimenta Velloso, Joëlle Rouchou e Cláudia Oliveira.
Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2009.