domingo, 29 de junho de 2014

Os desenhos de Hans Bellmer

A obra de Hans Bellmer é composta pelas bonecas ‘esculpidas’ e fotografias provenientes delas, além de uma produção textual e gráfica extremamente elaborada. Para ele, interessava as possibilidades provenientes de uma relação mais imediata entre imaginação e realidade do que a distinção entre os meios de expressão.

Ao analisar as imagens criadas por Bellmer, percebe-se que a boneca em sua forma plástica consistia em um objeto dotado de infinitas possibilidades de transformação, porém, desenhá-las possibilitou a criação de posturas corporais ‘simultâneas’ que a versão plástica só permitia acontecer de maneira ‘sucessiva’. Percebe-se, principalmente nos desenhos, como um corpo delineado pelo desejo se sobrepõe a um corpo ‘natural’ esgarçando suas possibilidades expressivas.

Hans Bellmer. Ilustração para L’histoire del’oeil 
                           de Georges Bataille, 1947.                                             

            

Hans Bellmer. A Sade, 1961.


Segundo Robert Short (2006, P. 73, 74), “a série de trabalhos que datam de 1938 a 1939 é a primeira expressão gráfica completa da sua ideia do corpo como anagrama.” A associação a esse termo linguístico traduz a exata atitude de Bellmer com relação às partes do corpo de suas bonecas, já que no anagrama as letras de uma palavra podem ser rearranjadas, criando palavras com diferentes significados. Nesse sentido, Bellmer cria os anagramas do corpo que, mais do que jogos combinatórios, representam um método de exploração de novas configurações corporais. As metamorfoses possibilitadas a partir da dissociação e posterior reconstrução do corpo de suas bonecas tiveram suas capacidades aumentadas com sua equivalência gráfica. A liberdade proporcionada pelos desenhos através da simultaneidade, de sobreposições, multiplicações e subtrações das partes, permitia a visualização do interior e do exterior do corpo, ao mesmo tempo. Como se fosse possível, ter uma visão de todos os ângulos da boneca de uma só vez.
A figura do ‘Cefalópode’, por exemplo, que representa um corpo feminino composto de cabeça e pernas, pode ser apresentado tanto com a cabeça presa a um par de pernas, como a vários pares.


Hans Bellmer. Duplo cefalópode, 1965.

Hans Bellmer. Ilustração para ‘A  Anatomia da imagem’, 1957.


 No ensaio denominado ‘Pequena Anatomia do Inconsciente Físico’ ou ‘Pequena Anatomia da Imagem’, publicado inicialmente em 1957, Bellmer confronta uma anatomia do nosso corpo puramente subjetiva e uma anatomia da imagem como processo de formação da imagem poética. No livro, o artista desvela as intenções que estão por trás de sua produção pictórica. Em uma carta à Herta Hausmann em 1964, ele revela que a principal intenção deste livro era ‘mostrar a existência de um imaginário puramente subjetivo na anatomia do corpo humano’, ou seja, a busca de um equivalente plástico/imagético para um ‘inconsciente físico’. (WEBB e SHORT, 2006 p.104)

"Bellmer buscava demonstrar que o corpo era o lugar de um sistema estruturado, o qual ele chamava de ‘inconsciente físico’ com suas próprias leis de correspondência e diferenciação. Uma ‘anatomia da imagem’ descreveria os mecanismos de trabalho em nosso inconsciente físico e os processos que fundamentam a expressão humana. O conhecimento desse sistema de ligações entre corpo e mente explicaria por que certas imagens, embora irracionais em aparência, nos toca com inexplicável autenticidade e mesmo, nos provoca este senso de perturbação que os surrealistas qualificariam de ‘convulsivo’."(WEBB e SHORT, ano 2006, p. 105 Tradução nossa)


                                     Hans Bellmer. Ilustração para A Anatomia da Imagem, 1957.                                

Hans Bellmer. Ilustração para A Anatomia da Imagem, 1957.  

Para finalmente abordar a origem dos deslocamentos presentes nas imagens, onde determinadas partes substituem outras, Bellmer fala primeiramente de reflexos físicos elementares. Ele dá o exemplo da dor de dente, acompanhada da contração dos músculos da mão que se fecha:

"A base do punho é um centro de agitação artificial, um ‘dente virtual’ que direciona o sangue e a corrente de tensão nervosa do centro real da dor para ele mesmo, a fim de reduzi-la. A dor de dente foi dividida, figurativamente duplicada, às custas da mão em contorção do qual seu ‘pathos lógico’ é visivelmente expresso [na forma de um punho]." (BELLMER apud SHORT, 2006, p.105 e 106 Tradução nossa)

Dessa maneira, Bellmer determina o centro real da dor (dente) e o centro reflexo da dor (punho), deslocando-a com o objetivo de dividi-la e/ou duplicá-la, criando uma rede de centros reais e imaginários a partir da relação-reflexa entre as partes. Outro estímulo para os deslocamentos são os estudos psicanalíticos e neurológicos que Bellmer acompanhou e que sugeriu possibilidades de transferências entre órgãos e outras partes do corpo. “Ele refere-se ao caso de uma paciente sofrendo de histeria cujos sentidos tornaram-se transpostos de maneira que ela era aparentemente capaz de ver com sua mão e de ler claramente no escuro.” (SHORT, 2006, p. 108)
Com as bonecas de partes articuladas, as fotografias, o sistema de reflexos físicos, as sobreposições nos desenhos, entre outros fatores, Bellmer apontou para uma nova concepção de corpo. Um corpo animado pelo sonho, sujeito a inúmeras metamorfoses ditadas pelo desejo e realizadas pela imaginação.


Referências Bibliográficas

TEIXEIRA, Aline dos Santos. A construção de um corpo aos pedaços. Rio de Janeiro, 2014. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death, desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. New York: Solar Books, 2006.


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