A obra de Hans Bellmer é composta
pelas bonecas ‘esculpidas’ e fotografias provenientes delas, além de uma
produção textual e gráfica extremamente elaborada. Para ele, interessava as
possibilidades provenientes de uma relação mais imediata entre imaginação e
realidade do que a distinção entre os meios de expressão.
Ao analisar as imagens criadas
por Bellmer, percebe-se que a boneca em sua forma plástica consistia em um
objeto dotado de infinitas possibilidades de transformação, porém, desenhá-las
possibilitou a criação de posturas corporais ‘simultâneas’ que a versão
plástica só permitia acontecer de maneira ‘sucessiva’. Percebe-se,
principalmente nos desenhos, como um corpo delineado pelo desejo se sobrepõe a
um corpo ‘natural’ esgarçando suas possibilidades expressivas.
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Hans Bellmer. Ilustração para L’histoire
del’oeil
de Georges Bataille, 1947.
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Hans Bellmer. A Sade, 1961. |
Segundo Robert Short (2006, P.
73, 74), “a série de trabalhos que datam de 1938 a 1939 é a primeira
expressão gráfica completa da sua ideia do corpo como anagrama.” A associação a
esse termo linguístico traduz a exata atitude de Bellmer com relação às partes
do corpo de suas bonecas, já que no anagrama as letras de uma palavra podem ser
rearranjadas, criando palavras com diferentes significados. Nesse sentido,
Bellmer cria os anagramas do corpo que, mais do que jogos combinatórios,
representam um método de exploração de novas configurações corporais. As
metamorfoses possibilitadas a partir da dissociação e posterior reconstrução do
corpo de suas bonecas tiveram suas capacidades aumentadas com sua equivalência
gráfica. A liberdade proporcionada pelos desenhos através da simultaneidade, de
sobreposições, multiplicações e subtrações das partes, permitia a visualização
do interior e do exterior do corpo, ao mesmo tempo. Como se fosse possível, ter
uma visão de todos os ângulos da boneca de uma só vez.
A figura do ‘Cefalópode’, por exemplo, que representa um corpo feminino composto
de cabeça e pernas, pode ser apresentado tanto com a cabeça presa a um par de
pernas, como a vários pares.
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Hans Bellmer. Duplo cefalópode, 1965. |
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Hans Bellmer. Ilustração para ‘A Anatomia da imagem’, 1957. |
"Bellmer buscava demonstrar que o corpo era o lugar de um sistema estruturado, o
qual ele chamava de ‘inconsciente físico’ com suas próprias leis de
correspondência e diferenciação. Uma ‘anatomia da imagem’ descreveria os
mecanismos de trabalho em nosso inconsciente físico e os processos que
fundamentam a expressão humana. O conhecimento desse sistema de ligações entre
corpo e mente explicaria por que certas imagens, embora irracionais em
aparência, nos toca com inexplicável autenticidade e mesmo, nos provoca este
senso de perturbação que os surrealistas qualificariam de ‘convulsivo’."(WEBB e
SHORT, ano 2006, p. 105 Tradução nossa)
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Hans Bellmer. Ilustração para A Anatomia da Imagem, 1957. |
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Hans Bellmer. Ilustração para A Anatomia da Imagem, 1957. |
Para finalmente abordar a origem dos deslocamentos presentes nas
imagens, onde determinadas partes substituem outras, Bellmer fala primeiramente
de reflexos físicos elementares. Ele dá o exemplo da dor de dente, acompanhada
da contração dos músculos da mão que se fecha:
"A base do punho é um centro de agitação artificial, um ‘dente virtual’
que direciona o sangue e a corrente de tensão nervosa do centro real da dor
para ele mesmo, a fim de reduzi-la. A dor de dente foi dividida,
figurativamente duplicada, às custas da mão em contorção do qual seu ‘pathos
lógico’ é visivelmente expresso [na forma de um punho]." (BELLMER apud SHORT, 2006, p.105 e 106 Tradução nossa)
Dessa maneira, Bellmer determina o centro real da dor (dente) e o centro
reflexo da dor (punho), deslocando-a com o objetivo de dividi-la e/ou
duplicá-la, criando uma rede de centros reais e imaginários a partir da relação-reflexa
entre as partes. Outro estímulo para os deslocamentos são os estudos
psicanalíticos e neurológicos que Bellmer acompanhou e que sugeriu
possibilidades de transferências entre órgãos e outras partes do corpo. “Ele
refere-se ao caso de uma paciente sofrendo de histeria cujos sentidos
tornaram-se transpostos de maneira que ela era aparentemente capaz de ver com
sua mão e de ler claramente no escuro.” (SHORT, 2006, p. 108)
Com as bonecas de partes articuladas, as fotografias, o sistema de
reflexos físicos, as sobreposições nos desenhos, entre outros fatores, Bellmer
apontou para uma nova concepção de corpo. Um corpo animado pelo sonho, sujeito
a inúmeras metamorfoses ditadas pelo desejo e realizadas pela imaginação.
Referências Bibliográficas
TEIXEIRA,
Aline dos Santos. A construção de um corpo aos pedaços. Rio de Janeiro, 2014.
Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death, desire and the doll: the life and art
of Hans Bellmer. New York: Solar Books, 2006.
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