Entre os
artistas europeus, que nas primeiras décadas do século XX voltaram-se para o
projeto de decomposição da figura, destaca-se em particular o nome de Hans
Bellmer. Nos anos de 1930, Hans Bellmer criou uma série de bonecas com partes
articuladas que podiam ser desmembradas e reagrupadas de diversas maneiras. O
corpo humano tal qual o conhecemos perdia sua estrutura íntegra, podendo ser
estruturado, entre outras combinações, sem o tronco ou com mais de um par de
pernas. Foi em 1934 que o trabalho do artista alemão apareceu pela primeira vez
na França, com a publicação de uma série de fotos na revista surrealista
Minotaure, cujo título era ‘Variações sobre a montagem de uma menina
desarticulada’.
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Hans Bellmer "Poupée": Variations sur le montage d'une mineure articulée", in Minotaure 6, 1934 |
Hans Bellmer
construiu a sua primeira boneca na mesma época que Hitler chegou ao poder. A
boneca construída à imagem de uma menina adolescente consistia em uma resposta
crítica ao autoritarismo do Estado Nazista. A primeira boneca possuía um tronco
rígido e membros intercambiáveis que foram combinados incessantemente e
fotografados em diferentes ambientes. O reconhecimento de um corpo supostamente
real no que diz respeito a sua estrutura corpórea e ao mesmo tempo artificial,
na maneira como essa estrutura era organizada, dispostos em ambientes
cotidianos realistas provocavam um jogo de ambivalências, eliminando as
fronteiras distintas entre real e artificial, mulher e criança, vida e morte,
prazer e dor entre outros.
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Hans Bellmer, "La Poupée" 1936 |
As bonecas
consistiam em esculturas tridimensionais, mas Bellmer escolheu a fotografia
como meio principal de reprodução. A fotografia trazia a imagem da boneca
exatamente de acordo com o ponto de vista do artista e possibilitava uma visão
mais voyeurística por parte do espectador.
As imagens propostas por Bellmer traziam em seu
contexto referências temporais, cenas que traziam a impressão de serem
desfechos de acontecimentos prévios ou cenas de ‘um provável próximo capítulo’.
As fotografias como superfícies estáticas traziam em si uma potencialidade
dinâmica, transformadora. Como num sonho, o efeito desejado era o de
revelar o inconsciente e desestabilizar as expectativas. “Não se tratava apenas
de questionar a ‘realidade’, mas também de questionar a forma pela qual ela era
normalmente representada”. (Briony, Fer, 1998, p. 172)
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Hans Bellmer, "La Poupée" 1936 |
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Hans Bellmer, "La Poupée" 1936 |
“A boneca representava o oposto do corpo geometrizado, confinado numa forma definitiva, circunscrito a limites e medidas. Num processo permanente de permutação dos membros e órgãos, manipulando-os em complexas combinações, os devaneios anatômicos de Bellmer buscavam fazer coincidir a imagem real e a imagem virtual de um corpo, reunindo numa só figura o resultado da percepção imediata do olhar e as reinvenções da imaginação. Ao afirmar a primazia do corpo do desejo sobre o corpo natural, o artista colocava em cena imagens nas quais os diversos membros e órgãos tornavam-se intercambiáveis, conferindo autonomia aos pedaços, para que cada qual pudesse, segundo suas palavras, ‘viver triunfalmente sua própria vida’”. (MORAES, 2006, p.26)
Referências Bibliográficas
FER,
Briony; BATCHELOR, David; WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo,
Surrealismo: A arte no entre - guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
LICHTENSTEIN,
Therese. Behind close doors: the art of Hans Bellmer. London ,
England : University of California
press, 2001.
MORAES, Eliane Robert. Os devaneios anatômicos de
Hans Bellmer. in: GREINER, Christine, Org.; AMORIM, Claudia, Org.; Leituras do
sexo, São Paulo: Annablume, 2006.
MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a
decomposição da figura humana de Lautréamont à Bataille, São Paulo:
Iluminuras/FAPESP. 2002
WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death,
desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. Solar Books, 2006.
Artigo de Sue Taylor - Instituto de Arte de Chicago:
http://www.artic.edu/reynolds/essays/taylor.php
Artigo de Sue Taylor - Instituto de Arte de Chicago:
http://www.artic.edu/reynolds/essays/taylor.php