sexta-feira, 12 de abril de 2013

As Bonecas de Hans Bellmer



Entre os artistas europeus, que nas primeiras décadas do século XX voltaram-se para o projeto de decomposição da figura, destaca-se em particular o nome de Hans Bellmer. Nos anos de 1930, Hans Bellmer criou uma série de bonecas com partes articuladas que podiam ser desmembradas e reagrupadas de diversas maneiras. O corpo humano tal qual o conhecemos perdia sua estrutura íntegra, podendo ser estruturado, entre outras combinações, sem o tronco ou com mais de um par de pernas. Foi em 1934 que o trabalho do artista alemão apareceu pela primeira vez na França, com a publicação de uma série de fotos na revista surrealista Minotaure, cujo título era ‘Variações sobre a montagem de uma menina desarticulada’.


Hans Bellmer "Poupée": Variations sur le montage d'une mineure articulée", in Minotaure 6, 1934

Hans Bellmer construiu a sua primeira boneca na mesma época que Hitler chegou ao poder. A boneca construída à imagem de uma menina adolescente consistia em uma resposta crítica ao autoritarismo do Estado Nazista. A primeira boneca possuía um tronco rígido e membros intercambiáveis que foram combinados incessantemente e fotografados em diferentes ambientes. O reconhecimento de um corpo supostamente real no que diz respeito a sua estrutura corpórea e ao mesmo tempo artificial, na maneira como essa estrutura era organizada, dispostos em ambientes cotidianos realistas provocavam um jogo de ambivalências, eliminando as fronteiras distintas entre real e artificial, mulher e criança, vida e morte, prazer e dor entre outros.

Hans Bellmer, "La Poupée" 1936


As bonecas consistiam em esculturas tridimensionais, mas Bellmer escolheu a fotografia como meio principal de reprodução. A fotografia trazia a imagem da boneca exatamente de acordo com o ponto de vista do artista e possibilitava uma visão mais voyeurística por parte do espectador.
As imagens propostas por Bellmer traziam em seu contexto referências temporais, cenas que traziam a impressão de serem desfechos de acontecimentos prévios ou cenas de ‘um provável próximo capítulo’. As fotografias como superfícies estáticas traziam em si uma potencialidade dinâmica, transformadora. Como num sonho, o efeito desejado era o de revelar o inconsciente e desestabilizar as expectativas. “Não se tratava apenas de questionar a ‘realidade’, mas também de questionar a forma pela qual ela era normalmente representada”. (Briony, Fer, 1998, p. 172)


Hans Bellmer, "La Poupée" 1936

Hans Bellmer, "La Poupée" 1936





















“A boneca representava o oposto do corpo geometrizado, confinado numa forma definitiva, circunscrito a limites e medidas. Num processo permanente de permutação dos membros e órgãos, manipulando-os em complexas combinações, os devaneios anatômicos de Bellmer buscavam fazer coincidir a imagem real e a imagem virtual de um corpo, reunindo numa só figura o resultado da percepção imediata do olhar e as reinvenções da imaginação. Ao afirmar a primazia do corpo do desejo sobre o corpo natural, o artista colocava em cena imagens nas quais os diversos membros e órgãos tornavam-se intercambiáveis, conferindo autonomia aos pedaços, para que cada qual pudesse, segundo suas palavras, ‘viver triunfalmente sua própria vida’”. (MORAES, 2006, p.26)




Referências Bibliográficas

FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: A arte no entre - guerras. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

LICHTENSTEIN, Therese. Behind close doors: the art of Hans Bellmer. London, England: University of California press, 2001.

MORAES, Eliane Robert. Os devaneios anatômicos de Hans Bellmer. in: GREINER, Christine, Org.; AMORIM, Claudia, Org.; Leituras do sexo, São Paulo: Annablume, 2006.

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana de Lautréamont à Bataille, São Paulo: Iluminuras/FAPESP. 2002

WEBB, Peter, SHORT, Robert. Death, desire and the doll: the life and art of Hans Bellmer. Solar Books, 2006.

Artigo de Sue Taylor - Instituto de Arte de Chicago:
http://www.artic.edu/reynolds/essays/taylor.php





quarta-feira, 10 de abril de 2013

Um processo aos pedaços - o início


Desde que me formei no curso de bacharelado em dança da UFRJ, venho pesquisando sobre o que seria a deformação da forma corporal e assuntos afins. A fragmentação da figura humana, que também considero inserida dentro dessa pesquisa sobre deformação, tem estimulado bastante os meus últimos trabalhos coreográficos. Este último, até o momento intitulado “Pedaços” é fruto de algumas reflexões realizadas por alguns artistas plásticos, escritores e pensadores do modernismo, em especial, Georges Bataille e Hans Bellmer. Nomes geralmente associados ao movimento surrealista, apesar de ambos serem dotados de especificidades únicas para serem confinadas em um movimento da arte moderna. A pesquisa, assim, transita por um imaginário fantástico e se apóia em questões como a fragmentação corporal, a deformação, a mutilação e a dissociação das partes do corpo.

Entrei em contato com o pensamento de Georges Bataille e com a obra de Hans Bellmer a partir do livro “O corpo Impossível” de Eliane Robert Moraes. No livro, Eliane faz um estudo aprofundado do processo de decomposição da figura humana pelos modernistas com atenção especial ao pensamento de Bataille. Apesar de intensa identificação com o tema, ainda não sabia qual seria o fio condutor da pesquisa e só o encontrei quando após uma série de leituras fui para a ‘prática’. Até então, não conseguia definir o que estava pesquisando, mas conseguia por o projeto em prática. A partir daí as coisas foram ficando mais claras e um possível tema foi sendo recortado.

É importante atentar para “o instante sensível e espontâneo em que uma possível obra é indiciada. Pode ser tudo, mas ainda não é nada, só uma possibilidade. (...) A percepção artística acontece nesse instante de transformação singular que aponta para uma possível futura obra” (Salles, 2001, p.97)

O processo foi de intensa experimentação. Eu experimentava, filmava, observava e refletia. Depois de alguns meses nessa atividade quis começar a fechar algumas idéias e seqüências. Eu sempre fui muito ligada à forma do movimento corporal e o natural para mim seria construir o trabalho a partir de seqüências de movimentos militarmente precisas ainda que deformadas. Mas não era possível. O fluxo de movimentos não se permitia confinar em formas exatas e a crise se instaurou.

Continuei experimentando até que algumas idéias foram ficando recorrentes e o trabalho foi se moldando a partir de um roteiro de dinâmicas corporais, onde algumas formas foram responsáveis pela costura do todo a fim de não torná-lo apenas um improviso. Ao invés de seqüências coreográficas, uma trajetória linear reta dividida por variações de dinâmica corporal, pontuada por formas geometricamente definidas/deformadas que buscam estados corpóreos provenientes de variações na intensidade da força aplicada ao movimento. Pedaços de corpo que se escondem e reaparecem transitando entre a falta e o excesso. Continua...

MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível: A decomposição da figura humana de Lautréamont à Bataille, São Paulo: Iluminuras/FAPESP. 2002

SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado – Processo de criação artística. Segunda edição. São Paulo: Annablumme/FAPESP: 2004.


"Pedaços", 2010 Foto de Fabiana Amaral